sábado, setembro 10, 2011

ACEITAÇÃO, NÃO. RESPEITO, SIM - COM ANTONIO SERZEDELO.

2011-08-31 02:19 

(Antonio Serzedelo, presidente da Opus Gay)
Por ocasião do contato que tive com Clovis Casemiro, o homem do turismo LGBT no Brasil, acabei conhecendo Antonio Serzedelo, um português provavelmente desconhecido para a maioria de nós, brasileiros.
Foi assim: um dia Clovis me manda um e-mail falando sobre “o tal do Antonio”, seu amigo portuga presidente de uma ONG LGBT chamada Opus Gay (clique aqui para acessar o site). Meu avô materno era português, assim como boa parte de minha família. Por puro preconceito meu – ou idiotice, sei lá – achei curioso o fato de haver uma ONG LGBT pelas bandas de lá. Na minha cabeça de penico, tomando por base o estereótipo de português que conheço – pelo menos os da minha família são todos mulherengos safados – soou meio como novidade o fato de haver uma população tão “alegre” por lá. De repente poderia haver uma meia dúzia de paneleiros (adjetivo português equivalente ao nosso “bicha”), mas que deviam viver nas sombras, escondidos atrás de seus fartos bigodões. Ok, a gente sabe que viado e sapatão dá em qualquer lugar, mas tem lugares que parece que a coisa é mais rara – pelo menos na minha cabeça nada normal. Por exemplo, russo viado e japonesa sapata são coisas meio “nada a ver” para mim. E o mesmo acontece com certas profissões. Não consigo imaginar peão de obra viado ou manicure sapatão. Mas é aquilo: "no creo en las brujas, pero que las hay, las hay".
Enfim, deixando minhas pirações de lado e voltando ao assunto desse ACEITAÇÃO, NÃO. RESPEITO, SIM”, resolvi aprofundar meu contato com Antonio para conhecer melhor a questão LGBT além mar. Nossa troca de informações foi tão frutífera que além da entrevista que agora publico no site, também rendeu uma entrevista minha para seu programa de rádio Vidas Alternativas – como é estranho ouvir a própria voz! – e um bate-papo bacana via Skype.
Com vocês, Antonio Serzedelo. Boa leitura!
(P.s.: caso alguém tenha interesse em ouvir a entrevista que dei para o Vidas Alternativas, clique na figura abaixo.)
Quando a homossexualidade surgiu em sua vida?
R: Muito cedo surgiu, na adolescência entre namoradas, festas, praia, piscina e desportos. Comecei a ter um amigo dois anos mais velho do que eu, com quem partilhava muitas aventuras e, por fim, também algumas sexuais, às escondidas, mas divertidas e gostosas.
Como foi seu processo de aceitação desta condição? Chegou a tentar se convencer que era algo passageiro? O que o levou a tomar esta atitude?
R: Os leitores tem de recuar, se forem capazes, 50 anos, pois eu tenho 65 anos agora. Nesta altura, em Moçambique, e na cidade de Lourenço Marques, hoje Maputo, era um tabu de que não se falava em lado algum, nem havia as palavras que hoje há para nomear as coisas. Só havia as palavras insultuosas em que as nossas línguas são ricas, e igualmente o conceito de doença, tara, pecado e inferno, que ia ao ponto de considerar o beijo hetero pecaminoso.
Eu não percebia muito bem o que se passava, mas gostava e pensava sempre que seria algo passageiro, que depois se esfumava. Numa fase seguinte, o meu medo era que algum dos parceiros contasse a alguém, mas depressa me convenci que isso não aconteceria, porque podia ser que ele morresse de acidente. Na verdade um dia realizei que isso já não era possível, dado que como eram muitos, só um acidente em cadeia é que os podia matar, ou então, se eu virasse um serial killer (risos). Mal conformado com a ideia, também pensei que em breve eu ia partir daquela cidade para outra e, portanto, o perigo deixaria de existir. Enfim, tinha medo do que diriam as outras pessoas, mas provavelmente os que tinham tido qualquer relação masturba tória comigo também deviam passar pelas mesmas preocupações. Como pelo meio havia algumas namoradas, creio que ninguém desconfiava, senão eu que desconfiava que os outros desconfiassem.
Quais foram seus medos / receios?
R: Os meus medos eram que os meus pais soubessem, que algo transpirasse para fora, se descobrissem na escola, embora eu fosse um rapaz perfeitamente "normal", com a vida normal de um adolescente, bom aluno, com sucesso. Mas vivia nesse receio doentio que me tornava a vida muito sofrida, e por vezes muito só, pois não tinha com quem falar. Mas continuava a ter namoradas com quem tinha relações boas.
Como foi a reação de seus familiares e amigos quando estes souberam de sua condição? Sentiu-se discriminado? Perdeu amizades?
R: Os meus familiares nunca vieram a saber, porque de facto saí dessa cidade, vim para a capital, Lisboa, e para a universidade, embora para um colégio religioso,Colégio Universitário Pio XII.Aí abriram-se para mim muitas janelas que eu não esperava, e que eu facilmente saltei.Devo dizer que fui excluído desse colégio por duas vezes, mas não foi por razões de sexualidade. Foi mais por razões contestatórias, embora o bufo que foi denunciar-me fosse um estudante homossexual que foi contar aos padres como nós complotavamos no meu quarto contra ordem vigente.
Uau! Foi muito bom ter sido expulso de lá, porque fiquei mais livre. Aluguei o meu próprio espaço, e fazia o que queria sem ter de dar satisfações a ninguém. Foi uma nova primavera que se abriu sobre a outra.
Mas isso não quer dizer que eu me assumisse, pois na verdade a mentalidade era outra. Entretanto eu começava a ler já a literatura disponível da época – pouca e fraca – e a viajar, a ver o contraste entre um país como o meu, fascinado pelo governo e instituições, fechado, muito católico ritualista, obediente e com uma sociedade cinzenta, e alguns outros países europeus, vivendo já em democracias com muito maior abertura.
A primeira vez que fui a Paris, fiquei tão deslumbrado com os monumentos como com o que vi no Jardim das Tulherias, junto ao Museu do Louvre, onde havia uma zona de encontros homos como eu nunca tinha imaginado. Estava meio basbaque, e achava isso impossível, esfregava os olhos para ver se estava a ver bem! E estava mesmo!

Claro que quando regressava a Portugal, nos primeiros dias era muito difícil a minha integração, que tinha de ser obrigatória, senão estaria em muitos maus lençóis. De facto algumas vezes tive pequenos incômodos com a polícia chamada de "costumes" como a que existe no Irã actualmente, e que perseguia os homossexuais, batia-lhes e explorava-os com chantagens. Mas escapei bem, e divertia-me muito com alguns amigos que tinha feito nessa altura e que hoje ainda mantenho.
Que dificuldades / preconceitos enfrentou assim que se assumiu homossexual? Sofreu alguma violência física ou verbal?
R: Enfrentei muitos preconceitos, talvez todos os que fazem parte do nosso menu de insultos públicos ou privados. Passei por violência verbal e física, sobretudo quando me tornei conhecido por aparecer nas televisões. Algumas coisas tornaram-se mais complicadas. Mas acho que passei bem.
Um dia soube pelo prestigioso semanário Expresso que se publica ao sábado, ao abrir a sua primeira página, que tinham sido caçados alguns skinheads de extrema direita que planejavam fazer-me mal, assim como a um rabi judeu e a um membro de uma associação anti racista. Estiveram presos alguns meses, mas depois foram soltos. Tive de pôr câmeras de vídeo na entrada da minha porta, mudar de carro e de trajectos habituais. Mas também os homossexuais enrustidos me tentaram prejudicar criando um site pornô com o nome da Opus Gay. Foi sobretudo em nível de concorrência, pois outra associação LGBT viu em mim um perigoso concorrente por aparecer muito na mídia e ser ouvido, ou respeitado. Então iniciaram uma campanha distribuindo boatos para me desclassificar, que eu seria um emissário da extrema direita francesa para destruir o movimento gay, ser uma extensão da Opus Dei, ser provavelmente pedófilo – até preparavam um comunicado em que o insinuavam, mas enganaram-se e mandaram-no para mim, para eu o ratificar! Claro que não saiu. Mas teria sido horrível, pois eu era professor. Também disseram que eu seria homofóbico, transfóbico, que vivia da prostituição, que teria sido comprado, ou vendido, por um partido do poder, e até chegaram a anunciar a minha morte por duas vezes num conhecido hospital de Lisboa "depois de longo sofrimento" (insinuação de AIDS). Comecei nesse dia a receber no meu celular telefonemas a perguntar onde era a igreja onde estaria o meu corpo. Imaginem os sobressalto que tive!
Ainda hoje essa associação, que é bastante poderosa, põe como condição para ir a um colóquio que a Opus Gay, ou eu, não sejamos convidados. Nunca me perdoou eu ser o mais antigo militante activo desta causa em Portugal, pois a 13 de Maio de 1974, vinte dias após o derrube do fascismo pelas forças militares – a célebre Revolução dos Cravos, de 25 de abril – meus amigos e eu publicávamos na imprensa o "Manifesto Liberdade para as Minorias Sexuais", assinado e escrito na minha casa. O manifesto provocou muitas reacções adversas nesse tempo, inclusive de um general da força aérea que veio à tevê estatal e única dizer que o "25 de Abril não se fizera para os homossexuais e as prostitutas reivindicarem o que quer que fosse”.

Que comparação você faz da época em que se assumiu para a de um jovem que se assume nos dias de hoje?
R: Ui! É da noite para o dia, apesar das múltiplas dificuldades que hoje ainda passam. Mas não tem comparação. Nesse tempo podiam ir para a cadeia e serem espancados, ou podiam ser internados por muitos anos. Hoje podem casar-se livremente perante a lei, e ninguém lhes pode tocar legalmente. Não quero dizer que não continue a grassar a homofobia, mas já não é impunemente.
Fale sobre a Opus Gay, sua atuação e o trabalho que você realiza na instituição.
R: Nascemos em 1998, e desde então, apesar das muitas dificuldades que se enfrentam nesta pequena sociedade como a portuguesa, continuamos apesar do muito pouco dinheiro a funcionar.
Há muito pouca militância, ao contrário do que se passa aí. Mas criamos, em 1999, o primeiro programa de rádio gay de Portugal e da península Ibérica, o Vidas Alternativas, com muito sucesso, e que ainda continua fazendo. Fizemos também a primeira universidade de verão gay; editamos a primeira antologia de poesia homoerótica portuguesa; fizemos um acordo com a associação de turismo de Lisboa para implementar o turismo LGBT, com pouco resultados porque outras associações afirmaram que era uma atitude "burguesa"; organizamos o Iº Congresso da ILGA (International Lesbian and Gay Association) da Europa em Lisboa; participamos em muitos colóquios, mesas redondas, estudos universitários sobre violência doméstica no casal homossexual, entrevistas, jogos florais, e fomos solidários com presos vítimas de homofobia, AIDS e mal tratados. Agora abrimos um projecto numa zona do interior de Portugal, Alentejo, cidade de Évora, contra a homofobia e violência doméstica. Estamos apoiados pela prefeitura, mas é tudo muito lento naquela zona onde há dois poderes facticos algo conservadores, a igreja e o partido comunista ,com quem, aliás, temos relações simpáticas nas redes de mulheres. Também pertencemos a uma interessante rede social de seropositivos da lusofonia, Rede Positivo da CPLP – que tem até perfil no Facebook – e que conta com a adesão de portugueses, brasileiros, afros, etc. A Opus Gay também tem um perfil nessa rede social para dar algum apoio a quem nos solicite. Também fizemos muitas parcerias com associações e instituições de Portugal, como, por exemplo, o portal Porto Gay, da cidade do Porto, e que conta com a participação de muitos brasileiros, e a Associação Casa do Brasil, onde pretendo implementar outras pontes através de um programa de rádio aproveitando o Vidas Alternativas e o site da Opus Gay. Pertencemos também a redes sociais ligadas às prefeituras de Lisboa, Seixal e Évora.
Aqui em Portugal as associações são muito umbiguistas, de modo que ainda não temos um fórum colectivo onde possamos discutir estratégias mínimas, até porque a Associação Ilga Portugal, que não representa a Ilga Internacional, mas usa o nome, quer tudo controlar, impondo seu discurso único, o que tem muitas vezes conseguido. Com isto não quero dizer que em muitas áreas não trabalhe bem com os subsídeos que tem, mas de forma muito "selectiva". Nunca presta nenhuma informação sobre o que faz, pelo que corremos o risco de gastarmos esforços a fazer as mesmas coisas sem sabermos. É pena, mas é assim há muitos anos.
Como é Portugal em relação ao tema LGBT? A população é tolerante? Há muitos casos de homofobia / bullying?
R: Somos o país mais homofóbico da Europa segundo o barômetro europeu, e aquele onde a maior discriminação entre todas é ainda contra o s homossexuais. Mas temos um país a dois tempos. Um país rural, conservador, debaixo da tutela da igreja e dos caciques políticos – coronéis – que não querem mudanças . O outro, um país urbano com certas cidades perfeitamente mergulhadas na globalização e que aceitam as mudanças que se estão a passar.
Quanto aos jovens estão a mudar bastante, sejam de esquerda ou de direita. São uma força adormecida. Os homens e mulheres da minha idade, formatados no fascismo que acabou em 1974, esses já tem muita dificuldade em mudar as cabeças.
Há casos de homofobia relatados nos jornais,e de bullying nas escolas, sobretudo. Há uma associação de jovens que recebeu um importante subsídeo do Estado para tratar do tema nas escolas. Eu sou muito convidado para ir falar a elas,e não deixo de abordar o assunto.
Aqui no Brasil há um grande número de jovens intolerantes com a questão LGBT. E os jovens portugueses, eles são esclarecidos ou também são intolerantes?
R: Há tal como aí de tudo, mas não temos essa violência física quotidiana. É raro haver crimes homofóbicos, e a maior parte deles é por razões sentimentais ou por interesses materiais.
O mais recente e violento deu-se no fim do ano passado em NY, num hotel chique, na pessoa de Carlos Castro, um cronista social de 65 anos que foi morto violentamente pelo seu acompanhante ou namorado com quem já viajara outras vezes, que era um jovem manequim de sucesso que o torturou, mutilou, cegou, castrou com um saca rolhas e depois partiu lhe a cabeça com o computador. No fim exclamou "já não sou gay, matei o vírus". Agora corre o risco nos EUA de levar uma pena de prisão de 25 anos à prisão perpétua. O mais estranho é que na cidadezinha donde ele é natural, fizeram cordões humanos à volta da Igreja matriz e rezaram terços para que ele fosse inocentado e voltasse para Portugal como um herói!

E no campo político, como o país trata a questão?
R: Sempre que os socialistas estão no poder as coisas avançam. Quando eles saem, recuam. Foi com o actual primeiro ministro José Sócrates que passou a lei do casamento civil, da identidade de género, a agilização dos divórcios civis de mútuo consentimento e o alargamento das "uniões de facto", a que vocês chamam parcerias civis. Fiz muitas intervenções públicas sobre esses assuntos, pois mais de um quarto da população em Portugal vive em parceria civil, enquanto os casamentos decaem. Por isso no dia 31 de Maio do ano passado o primeiro ministro convidou-me para ir almoçar com ele e outras ONGs à sua residência oficial, onde tivemos uma interessante troca de impressões.
Li uma entrevista sua onde você fez uma observação muito interessante. Nela você criticava essa postura homofóbica de muitos acreditarem que um casal LGBT poderia influenciar “negativamente” a formação da criança, mas que esses mesmos críticos não condenam mães que trocam de marido como quem troca de roupa, ou pais que constantemente dão péssimos exemplos de comportamento. Fale um pouco sobre isso.
R: São os preconceitos que grassam e a desinformação que corre. Os serviços esquecem-se que o superior interesse da criança é que está em jogo. Como são preconceituosos, podem perfeitamente dar a criança a uma mulher solteira que até pode ter uma vida sexual "agitada", e não darem a um casal homossexual estável.
Em outra interessante observação, você citou os religiosos que tentam usar a Bíblia para condenarem a condição LGBT. Você disse: “Eu acho que nestas questões (...) há também que olhar para uma Bíblia mais recente, porque se ele (o Cardeal José Saraiva Martins) for à Bíblia, também pode ler que o Sol é que roda em torno da Terra (...) a verdade é que é preciso ‘dar a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. Fale um pouco sobre a relação religião X LGBT em Portugal.
R: É, infelizmente, uma relação muito conflituosa e dolorosa para os católicos, que são excluídos da igreja e às vezes até perseguidos socialmente nos meios pequenos. Tenho um excelente diálogo com um grupo de católicos progressistas chamado "Nós Somos Igreja", e também com outro grupo chamado "Rumos Novos", de homossexuais católicos que intervém razoavelmente na mídia a criticar as posições fundamentalistas de alguns bispos. De certa forma, acho que sou visto por certa hierarquia como um grande pecador, e à beira da excomunhão. Mas não me assusta isso. Critico-os muito, mas de forma respeitadora.
O nome Opus Gay é uma “brincadeira” com a Opus Dei?
R: Sim, sem dúvida. Se a Opus Dei é homofóbica, nós na Opus Gay somos a favor dos homos todos, e defendemo-los sempre que pudermos.
O tema LGBT é tratado pela televisão brasileira de forma, muitas vezes, superficial ou caricata, principalmente pelas telenovelas. Por exemplo, há aqui a questão do “beijo gay”. Várias vezes noticiaram que determinada novela exibiria um beijo entre um casal gay masculino, mas na hora H a cena sempre é vetada. Como a televisão portuguesa trata o tema?
R: É igual,até porque aqui a nossa televisão passa muitas telenovelas da Globo. A questão dos beijo também dá que falar, e nas telenovelas portuguesas, agora, começam a aparecer pessoas homos sem serem estereotipadas, mas ainda sem beijos.
Contudo, em programas de entretenimento e de humor pobres, com actores fracos, os gays são muitas vezes os bobos da festa. Nem sempre protestamos, porque se o fizermos estamos a fazer-lhes a publicidade que não merecem.
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R: Saí do armário, logo, existo. Antonio Serzedelo, livre, liberto, libertário, libertino e sem tabus. Beijos a todas e todos.

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