Hélio Schwartsman
A cura gay
O clima é de guerra. De um lado,
estão os gays e os Conselhos de Psicologia, em suas vertentes federal e
regionais, de outro, os cristãos, mais especificamente o povo evangélico. O tema
do embate é (aqui não há como evitar as aspas) "a cura da homossexualidade".
O certame teve início nos anos 90, quando
militantes do movimento gay, em particular a Associação Brasileira de Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), começaram a denunciar aos
conselhos os autointitulados psicólogos cristãos, que prometiam curar
homossexuais.
A ABGLT pedia punições a esses profissionais com
base no Código de Ética do Psicólogo, que, em seu artigo 2º, b, proíbe: "induzir
a convicções políticas, filosóficas, morais, ideológicas, religiosas, de
orientação sexual ou a qualquer tipo de preconceito, quando do exercício de suas
funções profissionais".
Em 1999, depois de alguns casos rumorosos na mídia,
o Conselho Federal (CFP) baixou a resolução nº 001/99, que não deixa nenhuma
margem a dúvida:
"Art. 2° - Os psicólogos deverão contribuir, com
seu conhecimento, para uma reflexão sobre o preconceito e o desaparecimento de
discriminações e estigmatizações contra aqueles que apresentam comportamentos ou
práticas homoeróticas.
Art. 3° - Os psicólogos não exercerão qualquer ação
que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem
adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não
solicitados.
Parágrafo único - Os psicólogos não colaborarão com
eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades.
Art. 4° - Os psicólogos não se pronunciarão, nem
participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de
modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais
como portadores de qualquer desordem psíquica".
Evidentemente, a briga continua, mas agora no plano
da opinião pública e do Legislativo. Além de nos bombardear com e-mails sobre a
"perseguição" a psicólogos cristãos, os evangélicos tentam no Congresso aprovar
um projeto de decreto legislativo (PDC 234/11) para sustar artigos da resolução
do CFP.
Vale observar que o proponente da matéria, o
deputado João Campos (PSDB-GO), também tem projetos de decreto para derrubar a
decisão do Supremo Tribunal Federal que legalizou as uniões estáveis
homossexuais e a que autorizou as marchas da maconha.
A iniciativa do parlamentar social-democrata (sim,
há ironia no adjetivo) é uma tremenda de uma bobagem. Da mesma forma que um
médico não pode hoje sair por aí dizendo que cura a doença de Huntington e um
físico está impedido de afirmar que faz o tempo correr para trás, um psicólogo
não pode proclamar que possui terapias efetivas contra o que seu ramo de saber
nem ao menos considera uma doença. Não se pode bater de frente e em público
contra os consensos da disciplina.
Não existe algo como psicologia cristã,
hidrostática católica ou cristalografia judaica. Idealmente, juízos científicos
se sustentam na racionalidade amparada por evidências (mas a questão é mais
complicada, como veremos ao final do artigo).
É claro que a ciência, ao contrário das religiões,
não trabalha com dogmas. Um pesquisador que pretenda provar que a
homossexualidade é uma doença pode tentar fazê-la em fóruns apropriados, como
congressos e trabalhos científicos, e sempre apresentando argumentações
técnicas, cuja validade e relevância serão julgadas procedentes ou não por seus
pares. Se ele os convencer, muda-se o paradigma. Caso contrário, ou ele abandona
o assunto ou deixa de falar na condição de psicólogo.
Como cidadão, acredito eu, todos sempre poderão
dizer o que bem entendem --além de fazer tudo o que não seja ilegal. Padres e
pastores vivem afirmando que a homossexualidade é pecado sem que o céu lhes caia
sobre a cabeça. É claro que a ABGLT protesta e de vez em quando um membro do
Ministério Público pode tentar alguma estrepolia, mas isso é do jogo. Apesar de
alguns atritos, a liberdade de expressão vem sendo relativamente respeitada no
Brasil nos últimos anos, como o prova a decisão do STF sobre a marcha da maconha
que o representante do PSDB quer derrubar.
Vou um pouco mais longe e, já adentrando em
terrenos hermenêuticos menos sólidos, arrisco afirmar que nem o Código de Ética
nem a resolução do CFP impedem um psicólogo de, em determinadas condições,
ajudar um homossexual que busca abandonar suas práticas eróticas.
Imaginemos um gay que, por algum motivo, esteja
profundamente infeliz com a sua orientação sexual e deseje tornar-se
heterossexual. O dever do profissional que o atende é tentar convencê-lo de que
não há nada de essencialmente errado no fato de ser gay. Suponhamos, porém, que
o paciente não se convença e continue sentindo-se desajustado. Evidentemente,
ele tem o direito de tentar ser feliz buscando "curar-se". E seu psicólogo não
está obrigado a abandonar o caso porque o paciente não aceita a ciência. Ao
contrário, tem o dever ético de fazer o que estiver a seu alcance para diminuir
o sofrimento do sujeito.
O que a resolução corretamente veta é que o
psicólogo coloque na cabeça de seus pacientes a ideia de que ser gay é uma falha
moral que pode e deve ser revertida. Impede também que ele faça propaganda em
que promete terapias efetivas.
Dito isto, não acho uma boa estratégia a do
movimento gay de vincular a defesa dos direitos de homossexuais a uma teoria
científica. Este me parece, na verdade, um erro grave.
Para começar, a ciência está calcada em hipóteses
que podem por definição ser refutadas a qualquer momento. Vamos supor que o
fundamento lógico para eu recusar a discriminação contra gays resida na
"evidência científica" de que a homossexualidade tem componentes genéticos e
ambientais, não sendo, portanto, uma escolha que possa ser modificada.
Imagine-se agora que alguém demonstre de forma insofismável que tais evidências
estavam erradas. O que ocorre neste caso? A discriminação fica legitimada?
Não é preciso puxar muito pela memória para lembrar
que movimentos por direitos civis e "ciência" (sim, fora dos manuais de
epistemologia, ela é uma atividade humana como qualquer outra que caminha ao
sabor de circunstâncias políticas e constructos sociais) já estiveram em lados
diferentes das trincheiras. Até 1990, a Organização Mundial da Saúde listava a
homossexualidade como uma doença mental. Os psiquiatras americanos faziam o
mesmo até 1977. Não sei se recomendava ou não o exorcismo, mas certamente
autorizava profissionais da saúde mental a tentar a "cura".
O argumento contra a discriminação de minorias
precisa ser moral. É errado discriminar gays, negros e membros de qualquer seita
religiosa porque não gostaríamos de sofrer tal tratamento se estivéssemos em seu
lugar.
Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve na página 2 às terças, quartas, sextas, sábados e domingos. Na Folha.com, escreve às quintas-feiras.
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