“Seja realista, peça o impossível”. Volto mais
uma vez à sugestiva frase dos muros do maio de 68 em Paris. Se considerarmos que
o sentido de uma ação se esclarece a partir dos meios empregados para atingir um
fim, a ação política contém uma ambiguidade peculiaríssima: seus fins são, via
de regra, justificáveis ou não, do ponto de vista dos ideais, ideologicamente,
como se costuma dizer, enquanto os meios o são instrumentalmente, a saber, do
ponto de vista de sua capacidade de alcançar esses fins.
Sim é isso mesmo: os fins justificam meios. Se isso é discutível
em termos da moralidade privada, é incontornável no âmbito do “ethos” da
política. Creio que foi por isso que Aristóteles recusou o idealismo de Platão e
sentenciou que ou o ideal é atingível para o comum dos homens, ou permanecerá
apenas um ideal impossível. Considerar a política como arte do possível,
entretanto, nem de longe significa cair no colo de um pragmatismo tosco, o tipo
das “políticas do real” que amiúde vemos por aqui e por ali.
Indiscutivelmente, os governos Lula, e agora Dilma,
reposicionaram um ideal até bem pouco tempo tomado como impossível: erradicação
da fome e da miséria extrema em nosso País. A isso Dilma acrescentou o saudável
ideal de País de classe média. É sobretudo em função desses fins supremos que se
deve julgar a maior ou menor racionalidade das alianças, das estratégias
político-administrativas e dos resultados. Ok.
O visível constrangimento do ministro Gilberto Carvalho pedindo
“perdão”, pasmem, à bancada evangélica por declarações bastante razoáveis
durante o Fórum Social em Porto Alegre, quando mencionou a necessidade de o
Estado disputar ideologicamente a chamada nova classe C, (o que é que tem demais
nisso?) não deve passar em branco. Aos poucos vemos um silencioso-ruidoso
crescimento da intolerância religiosa mais obscurantista, alimentando-se
justamente da laicização do Estado que os mesmos atores combatem.
Podemos estar criando corvos. Em plena aurora do século XXI,
quando as clínicas de medicina reprodutiva fazem cotidianamente diagnóstico
genético pré-implantação selecionando os melhores embriões para diminuir riscos
na gravidez, uma ministra não pode nem mencionar a palavra aborto que um bispo a
chama de “mal-amada”. Depois do STF julgar legítima a união homoafetiva, o belo
vídeo do Ministério da Saúde tem que ser retirado do ar. Do perdão podemos
passar à heresia.
O poder de barganha da bancada de Deus assombra o governo como
um espectro. Até aqui os compromissos de segundo turno têm sido honrados. Mas é
bom considerar que, quando a religião institucional triunfa, todos perdem.
Exemplos não faltam. É tempo e hora de voltar a exigir o impossível, ampliando
os fins, readequando os meios. É preciso não temer os religiosos. É sim preciso
enfrentá-los no campo democrático, nos debates, nos referendos, nos plebiscitos,
nos parlamentos. É hora de ver se o fim, nesse caso, realmente justifica o
acovardado meio. Deus? Não temais. Ele não tem nada a ver com isso.
Sandra Helena de Souza
sandraelena@uol.com.br Professora de Filosofia e Ética da Unifor
fonte http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2012/02/22/noticiasjornalopiniao,2788396/o-triunfo-da-religiao.shtml
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