terça-feira, janeiro 03, 2012

Bíblia e Homossexualidade - Stella Ferraz

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Poucos livros há que tenham sido usados para defender tantas idéias diametralmente opostas e conflitantes entre si como a Bíblia, a campeã do uso indevido de texto. Observe-se que cada igreja tem sua própria versão deste livro, desautorizando com um fulminante anathema sit, a excomunhão, as versões propostas por outras igrejas.

Assim, para aquelas que acreditamos em Deus e para quem a Bíblia tem um peso de revelação do divino, a manipulação do Livro Sagrado para combater a homossexualidade pode ser algo que nos enche de aflição e angústia. 

Por isso, não hesitei em participar do curso sobre a Bíblia e a homossexualidade, organizado pela igreja de Saint Bartholomeu, de orientação anglicana, quando estive em maio deste ano em Nova York. Aproveito, pois para apresentar aqui um outro enfoque sobre a Bíblia, aquele que ministros e ministras anglicanos discutiram conosco nos idos da primavera nova-iorquina. 

A primeira coisa que os tradicionalistas dizem para condenar a homossexualidade é que Deus nos criou homem e mulher para que, pelo sacramento do matrimônio, tivéssemos filhos. Há entre estes tradicionalistas quem diga que as Escrituras, clara e inequivocamente, declaram que a homossexualidade é um pecado contra Deus. Na verdade, a Bíblia não é tão clara nem tão inequívoca a este respeito. 

Veja-se Gênesis 1:27: “e Deus os criou homem e mulher”, que tem sido usado para afirmar o princípio da heterossexualidade. Deus nos fez homem e mulher, mas a Bíblia em momento algum diz qual é a norma que deve pautar o relacionamento afetivo/sexual entre estas criaturas: se deve ser entre homem e mulher ou entre dois homens ou duas mulheres. Nada há ali prescrito, tão somente uma afirmação de que Deus nos fez homem e mulher. Há que se levar em conta também que as idéias e entendimentos sobre a sexualidade têm se alterado ao longo dos séculos. Nos tempos bíblicos, as pessoas não compartilhavam de nosso conhecimento e costumes sexuais, assim como nós não temos como conhecer a experiência sexual dessas pessoas que viveram em tempos ancestrais. Não há, pois, como comparar vivências e costumes tão diversos. Basta citar, como exemplo, o amor romântico. Este amor não aparece na Bíblia, que nem sequer suspeita de sua existência. O amor romântico é invenção recente: originou-se na Provence (França), no século 10, tendo sido divulgado inicialmente pelos trovadores, de feudo em feudo, depois pelos românticos no século 19 e por Hollywood no século 20. Esta concepção de amor não existe na Bíblia, assim como não existe nela a atual concepção de relacionamento gay ou lésbico. 

Outra passagem usada pelos tradicionalistas para combater a homossexualidade é a de Sodoma. Esta passagem lança uma condenação, não à homossexualidade, mas à falta de hospitalidade (vide Gênesis, 19:1-9) e à opressão sobre os fracos e desamparados (vide Ezequiel, 16:48-49). Sodoma é um termo usado em uma dúzia de passagens bíblicas como sinônimo do mal, mas em momento algum é utilizado como sinônimo de homossexualidade. Os homens de Sodoma tentaram dominar os estrangeiros hospedados na casa de Lot, subjugando-os pela agressão e abuso sexual. Tal atentado em grupo tem a ver com estupro coletivo, humilhação e violência e não com homossexualidade. Os tradicionalistas manipulam o texto, porque Lot oferece as filhas para o estupro coletivo, dizendo aos habitantes de Sodoma que podem fazer o que quiserem com elas, mas que poupem seus hóspedes, os dois estrangeiros. Os habitantes querem os estrangeiros, não por sensualidade, mas por xenofobia, para humilhá-los. 

Outra coisa a se considerar é que há passagens na Bíblia que defendem, expressamente, comportamentos e regimes que hoje em dia são inaceitáveis, tais como, a escravidão. Há mais de uma centena de anos que ninguém mais se atreve a lembrar essas passagens para defender a escravatura. Mas está lá em São Paulo, que manda aos escravos serem obedientes e servis aos seus senhores terrenos como o são a Cristo... Também o anti-semitismo está justificado em passagens de São Paulo (vide I Tessalonicenses 2:14-15): “pois também vós sofrestes dos vossos compatriotas o que eles sofreram por parte dos judeus; eles que mataram o Senhor Jesus e os profetas, também nos perseguiram, não agradam a Deus e são inimigos de todos os homens”. A subjugação das mulheres é igualmente advogada por São Paulo (vide I Timóteo, 2:11-12): “a mulher deve guardar silêncio, com toda submissão. Não permito à mulher que ensine”.

Por outro lado, quando a Bíblia afirma em Levíticos 18:22 que a homossexualidade é uma abominação, ela a julga tão abominável como o o comer moluscos, Levíticos 11:10. Assim, são hoje inúmeros os teólogos que afirmam não haver na Bíblia texto expresso sobre a homossexualidade, tal como é entendida hoje. A Bíblia é, pois, um closet vazio, não há nada de específico sobre homossexualidade, nada nos diz sobre ela, tal como é entendida hoje. Mas tem muito a dizer sobre a graça de Deus, sua justiça e misericórdia. Jesus resumiu a lei de Deus mais importante contida na Bíblia: “Ame a Deus com todo seu coração, corpo e alma e ao seu próximo como a si mesmo”. Este é o melhor mandamento divino. E intolerância, com certeza, está fora disto.

Stella C. Ferraz é autora dos romances lésbicos Preciso te ver, A Vilas das Meninas e Pássaro Rebelde, publicados pela ed. Brasiliense. (Texto originalmente publicado em revista Um Outro Olhar, n. 38, ano 16, Fev.2003)

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