sábado, setembro 10, 2011

Do Cinema Iris à Fina Estampa: a higienização do discurso homossexual

 

“Quando cheguei lá naquela noite, o cartaz à entrada do Cinema Iris anunciava Kung Fu contra os filhos do karatê e Eu dou o que ela gosta, em sessão dupla. Dentro da sala de projeção, o movimento era igual ao do hall: havia muitas pessoas sentadas, mas a maioria permanecia de pé, ou circulava pelos corredores. Ao tentar me acostumar com a escuridão, tateando com a ponta dos dedos na cortina que cobria a parede dos fundos, tive a primeira surpresa: por trás da cortina, sob o toque dos meus dedos, uma súbita movimentação indicava que ali, escondidos entre o tecido e a parede, havia duas, três, quanto, cinco, talvez uma dezena de pessoas, amontoadas umas contra as outras. Mais alguns passos pelo corredor escuro, e pude ver, sob a luz avermelhada que indicava “homens”, um bombeiro devidamente fardado, a esmagar contra a parede um vulto que gemia, pronunciava palavras impublicáveis, aquelas que em família não se diz.”


O texto acima não é de minha autoria e tão pouco se trata de um conto erótico retirado aleatoriamente de algum site ou blog qualquer de putaria, apesar de eu adorar e já ter assumido diversas vezes que sou uma freqüentadora assídua destes sites. Na verdade, o trecho acima é de um texto de Aguinaldo Silva – autor de Fina Estampa, em exibição no horário nobre na Rede Globo. Mas não se engane, meu amor, não se trata de um trecho da novela... (adoraria que fosse!!!). Trata-se, na verdade, de uma reportagem sobre um cinemão, feita por Aguinaldo quando ainda participava da redação do “Lampião da Esquina”, um dos maiores trabalhos realizados no Brasil de 1978 a 1981 no que se refere à mídia dirigida ao público gay. O jornal teve uma vida curta (3 anos) mas o seu legado está aí até hoje, mona... E é base para qualquer trabalho acadêmico que queira entender a homossexualidade e a militância nestas terras tupiniquins.

Aguinaldo, no período de existência do Lampião era um jovem com pouco mais de 30 anos e, como os demais de sua época, tinha sofrido com as barbaridades de uma ditadura militar que ainda estava em curso. Talvez, por este motivo (e por outros também) seja notório o discurso revolucionário, contestatório e até sonhador do autor de Fina Estampa. Discursos que muito provavelmente o colocaram em destaque e o levaram até a emissora para a qual escreve novelas, séries e afins...


No entanto, ultimamente, Aguinaldo tem feito declarações no mínimo polêmicas e no máximo homofóbicas. Em seu perfil no Twitter, por exemplo, ele escreveu: "Pergunta: você é a favor da lei anti-homofobia? Minha resposta: sou contra qualquer lei que restrinja a liberdade de expressão". Ele, em outras oportunidades, afirmou que o povo está cansado de ver veado na televisão e, quando questionado sobre o famigerado beijo gay ele afirmou que “beijo gay, só lá em casa”, deixando bem claro que não seria em sua novela que o tal beijo aconteceria.

Mas o que teria acontecido com o autor desde o último exemplar de o Lampião da Esquina que teria feito o discurso revolucionário se tornar algo tão reacionário?

Eu aposto em três fatos que agiram concomitantemente (nossa, pega o dicionário...):

1.         1º Com o passar dos anos, e com a possibilidade de novas interpretações de mundo, os mais ferrenhos revolucionários tendem a se tornar em reacionários, mais ferozes que os que eram combatidos por eles na juventude. Este é um fenômeno que pode ser observado com vários líderes (sobretudo políticos). Na juventude ateavam fogo, pegavam em armas, desafiavam a ordem estabelecida e faziam tudo em nome da mudança. Hoje, são nossos governantes e jogam a cavalaria em cima de grevistas, por exemplo.
2.           
2º      2º Outro fator tem relação com o poder aquisitivo de uma pessoa. É mais fácil um jovem pobre (que tem pouco ou nada a perder) ter um espírito desafiador do que um senhor que já acumulou seus arôs com seus trabalhos em um canal de televisão. Daí, não é de estranhar que o comportamento e o pensamento de um senhor que vive confortavelmente em sua casa ampla, comendo, bebendo e curtindo as regalias que seu salário lhe permite diferirem tanto de quando ele era um jovem que dormia num quarto de uma pensão ralé.
3.       
O    3º O poder de uma emissora. Este, talvez, seja o motivo mais forte que explique a inversão de posições de Aguinaldo. A Rede Globo é uma emissora que, apesar de ser uma concessão pública, é uma empresa e que vive e sobrevive de anunciantes. E os valores de anúncios estão ligados, intimamente, ao número de expectadores. Assim, sendo, a emissora se comportará de acordo com as opiniões de uma maioria que “sustenta” a emissora. E, por mais que o autor tenha opiniões diferentes da emissora, é bem provável que, publicamente ele fará coro com seus patrões.

Em 1981 eu era apenas um bebê recém-nascido. Mas imagino que os leitores do Lampião devem sentir saudades de um Aguinaldo que acreditava estar quebrando paradigmas quando disse que “... o Lampião rompe mais uma vez os padrões convencionais do jornalismo...” . Hoje, esses leitores devem estar cheios destes discursos hipócritas e reacionários de Aguinaldo.

No começo deste artigo eu cito um trecho de uma reportagem feita por Aguinaldo que está à procura de uma frase, escrita no fétido banheiro do cinema Iris que dizia: “O Iris também é Brasil”. Com sua matéria, o repórter talvez quisesse mostrar um Brasil real, um Brasil que de fato existia... Me pergunto se Fina Estampa conseguirá traduzir o país da mesma forma que o antigo cinema e suas presenças desafiadoras...

Beijo, beijo, beijo... Fui...

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