Por Cezar Migliorin
Fomos surpreendidos semana passada com a proibição de exibição do filme de ficção “A Serbian Film — Terror sem limites”, de Srdjan Spasojevic, um filme ao qual eu não dedicaria nenhuma linha, não fosse esse evento. A proibição nos joga para uma época em que cabia aos mais diversos poderes — os mais ricos, mais fortes, mais velhos — definir as imagens que poderiam fazer parte da comunidade e aquelas que não poderiam. A escolha das “boas imagens” visava proteger a comunidade impedindo que certas ideias circulassem. Para que esses poderes pudessem assim operar, eles deveriam partir de um desequilíbrio essencial entre aqueles que sabiam julgar as imagens — religiosos, juízes, políticos — e a massa incapaz de fazer uso das imagens. O filósofo francês Jacques Rancière chamou esse tipo de inscrição das imagens na comunidade de um regime ético das imagens. Nesse regime, a noção de arte, criação, invenção não poderia existir ou, pelo menos, não poderia ter nenhuma relevância posto que a pertinência das imagens não se fazia em relação à sua capacidade inventiva ou representacional, mas em relação às crenças da comunidade, ao ethos. Sem a ficção, a imagem é um duplo do evento, ou seja, o evento novamente. Fica claro que nesse regime, sem a ficção, toda imagem que esteja em desacordo com o que desejam os poderes instalados deve ser eliminada.
Em nossa comunidade — Brasil, século XXI — nos organizamos de forma diferente. Trabalhamos com a noção de arte e de ficção, fazendo com que não existam mais os temas que podem ou não fazer parte da criação artística, os assuntos que podem ser representados e os que não podem. Se isso não está claro para o senso comum, está explicito na Constituição. No inciso IX do artigo 5 lemos o seguinte: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Rancière poderia dizer que a constituição brasileira se filia a um regime estético das imagens.
No campo estético, imagem é uma forma de reflexão sobre o real
Do regime ético à forma que entendemos as imagens hoje há a introdução da variável ficcional e estética, operando uma mudança decisiva. A imagem deixa de ser a coisa em si, para ser uma forma de reflexão da sociedade sobre o que nela existe. Sejamos contra ou a favor, não podemos impedir que a ficção exista nesses termos, com essa liberdade.
Do regime ético à forma que entendemos as imagens hoje há a introdução da variável ficcional e estética, operando uma mudança decisiva. A imagem deixa de ser a coisa em si, para ser uma forma de reflexão da sociedade sobre o que nela existe. Sejamos contra ou a favor, não podemos impedir que a ficção exista nesses termos, com essa liberdade.
Nossa comunidade, entretanto, proíbe certas práticas: assassinatos, roubos, pornografia infantil, etc. Sendo assim, a proibição do longa-metragem de ficção da Sérvia só poderia ser feita caso ele fosse em si um crime. Caso, por exemplo, houvesse uma cena real de pedofilia, o que não é o caso. Entretanto, o filme foi proibido.
Dizendo-se apoiado no Estatuto da Criança e do Adolescente, o advogado do DEM fez uma leitura do Estatuto como se vivêssemos em um regime em que os poderes devessem julgar as imagens que servem e as que não servem para a comunidade. Como se o partido fosse responsável pela proteção dos incultos indefesos que não têm condições de julgar o que veem e ouvem. A desembargadora de plantão construiu seu parecer dentro do mesmo pressuposto e, rompendo um princípio fundamental da democracia que diz que todos têm igualdade de condições para entender e criticar o mundo, impediu a exibição do filme.
Segundo o Art. 241-C do ECA, é proibido “Simular a participação de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual.” Se ignorarmos que as representações visuais fazem parte de uma comunidade em que existe arte e ficção, poderíamos facilmente interpretá-lo como fez a desembargadora e o DEM. Mas é certo que para entender a noção de simulação que está no Estatuto não podemos abandonar a própria comunidade em que o Estatuto foi feito, o Brasil e a sua Constituição.
Segundo o Art. 241-C do ECA, é proibido “Simular a participação de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual.” Se ignorarmos que as representações visuais fazem parte de uma comunidade em que existe arte e ficção, poderíamos facilmente interpretá-lo como fez a desembargadora e o DEM. Mas é certo que para entender a noção de simulação que está no Estatuto não podemos abandonar a própria comunidade em que o Estatuto foi feito, o Brasil e a sua Constituição.
Nesse sentido, um outro trabalho de interpretação parece necessário. A simulação incide aqui sobre a ideia de parecer real o que é montado, ou seja, dar a impressão de verdade onde há ficção, efetuando, pela montagem, uma falsa impressão de que um crime existiu. No registro ficcional, simular que alguém presenciou um determinado evento é um artifício amplamente utilizado, entretanto algo antecede essa simulação, que é o pacto com o espectador de que aquilo não existiu. No pacto ficcional não há simulação, no sentido de fingimento, apenas uma insinuação sem que o crime se efetive e sem que se possa ter a impressão de que houve crime. No filme em questão, não só não houve crime como a impressão de ter havido crime é restrita ao universo da ficção. Na ficção, a montagem não simula para apagar os limites entre o que é construído como ficção e o que se efetiva na realidade. O estatuto da ficção antecede a impressão de que a criança participou da cena e qualquer público adulto é capaz de compartilhar esse regime de imagens. Entendemos que quando alguém morre em um filme ele não morreu na vida real.
Justiça e DEM querem decidir o que deve ou não ser visto por nós
Chegamos assim ao ponto central de meu argumento. Como sabemos que nenhuma criança foi exposta a situações que a aviltasse, não é tarefa da lei julgar se alguns indivíduos têm ou não a capacidade de lidar com imagens que insinuem pedofilia, como fez a desembargadora ao dizer: “Não se pode admitir e permitir que, em nome da liberdade de expressão, cenas de extrema violência física e moral, inclusive, utilizando recém natos, sejam levadas ao grande público, vez que possam provocar reações adversas, às vezes em cadeia, em pessoas sem equilíbrio emocional e psíquico adequado para suportar tais evidências de desumanidade.”
O texto da desembargadora evidencia um neoplatonismo em que as paixões e as emoções são afetos grandes demais para ficarem nas mãos de artistas e espectadores, por isso devem ser controlados por quem entende o que é bom para a sociedade: a Justiça e o DEM. Trata-se de uma decisão que pode ser ótima para uma comunidade em que as imagens devem guardar continuidade com a vida religiosa ou cívica, mas não para o Brasil. Aqui a liberdade artística é parte do princípio democrático, não somente porque para a arte não há limites entre o que pode ou não ser abordado pelas obras, como não autorizamos nenhum poder a decidir quais são as imagens que devem circular.
Pedofilia, no final das contas, não está em questão nesse caso, mas uma tentativa autoritária em que alguns pretendem dizer o que deve e o que não deve ser visto por nós, pobre massa indefesa. Isso tem um nome: censura. Não, obrigado.
CEZAR MIGLIORIN é professor do Departamento de Cinema e Vídeo da Universidade Federal Fluminense
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