Por: Léo Rossetti
Foi hoje mesmo que soube que a dançarina Lacraia veio a falecer. Ouvi a notícia por volta das 13 horas, enquanto pegava carona com meu pai para trabalhar. Como é de praxe, ele ouve há anos um programa de péssimo gosto chamado "Patrulha da Cidade", da Super Rádio Tupi, que é transmitido nessa faixa de horário.
Até então os radialistas faziam suas explanações fictícias e já consagradas por explorar em demasia o sensacionalismo. E assim fizeram quando noticiaram que Jair Bolsonaro, o deputado homofóbico, estava distribuindo panfletos contra gays. Ora, é verdade que o tal deputado, indignado com a decisão do Supremo Tribunal Federal na semana passada, resolveu manifestar-se contra a diversidade. O problema foi a abordagem! O radialista debochava: "Cada um dá o que é seu...", como se ser LGBT implicasse necessariamente no ato de ser penetrado. Mas enfim, que se limitassem à ignorância. Pois não se limitaram, e ousaram ser inescrupulosos. Após noticiarem que um "traveco" matou uma mulher por ciúmes do namorado, e outras notícias tão fantasiosas quanto essa, resolveram colocar na pauta a morte da dançarina Lacraia, e foi daí que eu soube que ela havia falecido.
O erro começou por enfatizar o nome de batismo da dançarina. Ora, se ela quisesse ser chamada pelo nome de batismo, usaria o nome de batismo. Custa entender que ela é Lacraia e ponto!? Ou alguém fica por aí publicando os shows de José e Durval de Lima, ao invés de Chitãozinho e Xororó, ou Mirosmar e Welson David, ao invés de Zezé de Camargo e Luciano? Ou ainda, tecendo notícias de fofoca com o nome de Maria da Graça, ao invés de Xuxa, ou exibindo filmes com Arlette Torres, ao invés de Fernanda Montenegro? No caso da Lacraia, a intenção é realmente vilipendiar a honra, humilhar, ferir a história da dançarina.
Mas o que me deixou mais indignado, até mesmo assustado, foi quando um dos radialistas perguntou:
- Morreu de quê, de Aids?
E, ao receber uma suposta resposta afirmativa, completou:
- Viu só? Fica dando o que é seu por aí que você vai ver!, em referência à máxima proferida sobre a notícia da panfletagem do deputado Bolsonaro.
É sabido que o programa "Patrulha da Cidade" nunca teve muito escrúpulos nem muita ética ao abordar temas caros à sociedade e, por isso mesmo, polêmicos (ou melhor, polemizados) por ela, como o são os direitos humanos e a diversidade sexual. Liberdade de imprensa tem limite, minha gente. E é um limite ético! Liberdade de imprensa requer o mínimo de responsabilidade. Vincular a AIDS à prática sexual entre gays, especificamente atribuindo ao penetrado a culpa pela doença, é de um preconceito sem precedentes! Trata-se de uma irresponsabilidade inimaginável, além de refletir ignorância, retrocesso, má-fé. A atitude se assemelha àquela proferida por Marcelo Dourado, quando, ainda no reality show Big Brother Brasil 10, disse que heterossexuais não pegavam AIDS. Que história é essa de que "dar o que é seu" é condição per se de transmissão e recepção do vírus HIV? Como se não existisse prevenção entre LGBT's, como se ser LGBT fosse o bastante para ser soropositivo, como se heterossexuais usassem camisinha em todas as suas relações. E ainda, como se Lacraia fosse soropositiva.
Não é da conta de nenhum jornalista a sorologia da dançarina. A causa da morte não foi divulgada, e se não foi divulgada é porque não interessa. Há que se respeitar! Tantos e tantos artistas homossexuais e heterossexuais morrem em função das complicações do HIV e não há imprensa que tenha culhão de peitar o luto dos familiares desses artistas e de explorar sua dor em nome de um furo de reportagem que desvende que a causa da morte foi o vírus da AIDS. Por que com a Lacraia tem que ser diferente? Por dois motivos: 1) LGBT quando morre, sobretudo se, sendo biologicamente homem, trouxer consigo elementos do feminino, morre em função da AIDS. Não se pode ficar doente, emagrecer, mudar de vida, morrer, porque se é gay, tem AIDS!; e 2) Lacraia é uma aberração para nossa sociedade! Ela não se enquadra no masculino, no feminino, porque ela ousou ser mais que isso. Ela não se encaixou, não coube nas normas sociais. O que matou Lacraia não foi AIDS ou qualquer doença crônica que conste na Organização Mundial da Saúde. O que matou Lacraia, e continuará matando, infelizmente, todos os dias, é outra doença crônica que, por ser produto da sociedade, é considerada uma doença social: o preconceito.
Lacraia não morreu em função da falência de seus órgãos ou em decorrência da desfunção de coração. Lacraia foi assassinada! Sim, assassinada cruel e brutamente por programas como o "Patrulha da Cidade". E ela mesma, defunta, continuará a ser assassinada, morte sobre a morte, dia após dia, enquanto programas dessa estirpe continuarem a desrespeitá-la, destituindo-a de um direito tão fundamental, que é o direito de morrer, privando-a da dignidade na hora da partida.
Por outro lado, é de suma importância lembrar que a morte da Lacraia não é destino manifesto. A esperança de fazê-la viver está nas nossas mãos. Sim, nós já fomos capazes de eternizar tanta gente bacana, representativa, gente que iluminou nossas vidas com tanta alegria e emoção. Ou alguém duvida que Cazuza ainda viva? Eu creio que Renato Russo também está entre nós, assim como Tom Jobim, Jorge Lafond, Noel Rosa, Cássia Eller, e tantos outros, tantas outras artistas.
Vá em paz, Libélula do Bem! Seja feliz e transmita a alegria de viver aí, do outro lado deste palco da vida, estando certa de que você, enquanto estrela, continuará a brilhar, seja aí, seja cá, nos nossos corações!
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Se você também se sente indignado ou indignada com a abordagem sensacionalista do programa "Patrulha da Cidade", manifeste-se. Escreva para eles! Mostre sua rejeição a esta prática. Eu fiz isto e você pode fazer também. Hoje, Lacraia é cada um de nós. Clique AQUI para acessar o site deste programa e deixar a sua manifestação de repúdio
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Léo Rossetti
www.sainaurina.blogspot.com
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