Mais que novo direito, unanimidade no STF é recusa a uma discriminação injusta, diz pesquisadora
Sábado, 07 de Maio de 2011, 16h00
DEBORA DINIZImagine um juiz da mais alta corte do País proclamar que "sexo não é uma reprimenda dos deuses frente ao gênero humano, mas um regalo da natureza". Ou que "pertencer ao sexo masculino ou feminino é apenas um fato que se inscreve nas tramas do imponderável, do incognoscível, da química da própria natureza". Pois foi assim que o ministro Ayres Britto, relator da ação de união civil entre pessoas do mesmo sexo, abriu a votação histórica que considerou a união civil um direito que independe das práticas sexuais dos casais. Se afetos e desejos regem as relações intersubjetivas para o projeto de família, casais heterossexuais e homossexuais igualmente devem ser protegidos por nosso ordenamento jurídico. A votação foi unânime.
A astúcia do relator alçou voos mais do que poéticos como é sua marca na corte. O ministro Britto falou de sexo e prazer e lançou a norma heterossexista para escanteio, ao inspirar-se em Nietzsche para proclamar a supremacia da liberdade individual no campo da sexualidade. Sem rodeios, declarou que a repressão sexual era uma "criação dos homens", em uma citação sem lirismo de Foucault. Mas foi sóbrio e reafirmou os limites à liberdade sexual: estupro, incesto e pedofilia estão fora desse quadro argumentativo, pois são violações da liberdade sexual de outras pessoas. Os limites foram como um aposto ao vocativo de abertura do advogado que representou a voz da CNBB na tribuna - "poligâmicos, incestuosos, alegrai-vos. Eis aqui uma excelente tese para justificar os seus comportamentos", disse, em tom jocoso, já prevendo qual seria a decisão do tribunal.
A verdade é que somente como retórica popular e conservadora a ação de união civil poderia ser comparada a um novo estado de anomia no campo da regulação da sexualidade na sociedade brasileira. O que o STF decidiu foi uma demanda justa por reconhecimento - casais gays serão protegidos pelo Estado e terão seus direitos garantidos. Uma demanda simples, devendo ser entendida antes como uma recusa às interpretações injustas e restritivas que mesmo como um novo direito. Todos os ministros citaram o artigo 3º da Constituição Federal, que veda a discriminação por sexo. Impedir que duas mulheres sejam reconhecidas como uma entidade familiar para fins de proteções jurídicas é, portanto, uma discriminação injusta. Foi com essa simplicidade argumentativa que a ação saiu vitoriosa da corte.
Nem tão simples foram os flertes com as teorias feministas e de gênero para sustentar que a anatomia não é um destino para os corpos. Vencer a tese de que a descrição anatômica das genitálias demarca o campo das sexualidades possíveis foi um desafio mais tortuoso que sustentar a igualdade entre heterossexuais e homossexuais. Alguns ministros optaram por escapar desse terreno movediço que levou Simone de Beauvoir a afirmar que "o corpo é uma situação" ou que "não nascemos mulheres, mas nos tornamos mulheres", para concluir que nossos desejos sexuais não estão programados por nossas genitálias. Grande parte dos ministros fez uso de uma categoria romântica e bem recebida aos ouvidos de uma sociedade patriarcal - o afeto. Afeto é o que aproxima os fora da lei de gênero da norma heterossexista sobre como devem se guiar as relações familiares. Para um homem e uma mulher, há o amor e a paixão; para os gays, a felicidade e o afeto. Mesmo não sendo um jogo retórico inocente, essa foi a estratégica argumentativa possível para o sucesso de uma ação que provoca os fundamentos de uma ordem social centrada na família heteronormativa, que falsamente presume a biologia como um destino.
O ministro Gilmar Mendes anunciou que a ação pode ter sido o início de um novo tempo em que o "pensamento do possível" nos mostrará os desdobramentos de famílias gays serem legitimamente entidades para a vida pública. Se por "pensamento do possível" surgirem demandas por comparação entre a união civil e o casamento, adoção de crianças, acesso às tecnologias reprodutivas, além de conquistas mais prosaicas, como representação dos novos arranjos familiares nos livros didáticos, nas histórias infantis ou nos programas de televisão, um verdadeiro horizonte de igualdade foi aberto com essa decisão do STF. Não há por que temer as mais diversas surpresas que essa ação nos provocará - a igualdade é ambiciosa e a força do movimento gay mostrará o conjunto de domínios da vida que as novas famílias ocuparão.
O STF considerou que essa decisão rompeu um longo "silêncio eloquente". A origem do silêncio é a homofobia, um falso preconceito moral que subordina e oprime os fora da lei de gênero heterossexista. Mas a ordem jurídica democrática mostrou seu vigor - mesmo sem a devida mudança de mentalidades da sociedade brasileira, o princípio da igualdade saiu vitorioso. As 60 mil famílias que se declararam gays para o Censo 2010 podem sair do armário sem medo da insegurança jurídica. A mais alta corte do País declarou o fim da clandestinidade para elas.
DEBORA DINIZ É PROFESSORA DA UNB E PESQUISADORA DA ANIS - INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO
A astúcia do relator alçou voos mais do que poéticos como é sua marca na corte. O ministro Britto falou de sexo e prazer e lançou a norma heterossexista para escanteio, ao inspirar-se em Nietzsche para proclamar a supremacia da liberdade individual no campo da sexualidade. Sem rodeios, declarou que a repressão sexual era uma "criação dos homens", em uma citação sem lirismo de Foucault. Mas foi sóbrio e reafirmou os limites à liberdade sexual: estupro, incesto e pedofilia estão fora desse quadro argumentativo, pois são violações da liberdade sexual de outras pessoas. Os limites foram como um aposto ao vocativo de abertura do advogado que representou a voz da CNBB na tribuna - "poligâmicos, incestuosos, alegrai-vos. Eis aqui uma excelente tese para justificar os seus comportamentos", disse, em tom jocoso, já prevendo qual seria a decisão do tribunal.
A verdade é que somente como retórica popular e conservadora a ação de união civil poderia ser comparada a um novo estado de anomia no campo da regulação da sexualidade na sociedade brasileira. O que o STF decidiu foi uma demanda justa por reconhecimento - casais gays serão protegidos pelo Estado e terão seus direitos garantidos. Uma demanda simples, devendo ser entendida antes como uma recusa às interpretações injustas e restritivas que mesmo como um novo direito. Todos os ministros citaram o artigo 3º da Constituição Federal, que veda a discriminação por sexo. Impedir que duas mulheres sejam reconhecidas como uma entidade familiar para fins de proteções jurídicas é, portanto, uma discriminação injusta. Foi com essa simplicidade argumentativa que a ação saiu vitoriosa da corte.
Nem tão simples foram os flertes com as teorias feministas e de gênero para sustentar que a anatomia não é um destino para os corpos. Vencer a tese de que a descrição anatômica das genitálias demarca o campo das sexualidades possíveis foi um desafio mais tortuoso que sustentar a igualdade entre heterossexuais e homossexuais. Alguns ministros optaram por escapar desse terreno movediço que levou Simone de Beauvoir a afirmar que "o corpo é uma situação" ou que "não nascemos mulheres, mas nos tornamos mulheres", para concluir que nossos desejos sexuais não estão programados por nossas genitálias. Grande parte dos ministros fez uso de uma categoria romântica e bem recebida aos ouvidos de uma sociedade patriarcal - o afeto. Afeto é o que aproxima os fora da lei de gênero da norma heterossexista sobre como devem se guiar as relações familiares. Para um homem e uma mulher, há o amor e a paixão; para os gays, a felicidade e o afeto. Mesmo não sendo um jogo retórico inocente, essa foi a estratégica argumentativa possível para o sucesso de uma ação que provoca os fundamentos de uma ordem social centrada na família heteronormativa, que falsamente presume a biologia como um destino.
O ministro Gilmar Mendes anunciou que a ação pode ter sido o início de um novo tempo em que o "pensamento do possível" nos mostrará os desdobramentos de famílias gays serem legitimamente entidades para a vida pública. Se por "pensamento do possível" surgirem demandas por comparação entre a união civil e o casamento, adoção de crianças, acesso às tecnologias reprodutivas, além de conquistas mais prosaicas, como representação dos novos arranjos familiares nos livros didáticos, nas histórias infantis ou nos programas de televisão, um verdadeiro horizonte de igualdade foi aberto com essa decisão do STF. Não há por que temer as mais diversas surpresas que essa ação nos provocará - a igualdade é ambiciosa e a força do movimento gay mostrará o conjunto de domínios da vida que as novas famílias ocuparão.
O STF considerou que essa decisão rompeu um longo "silêncio eloquente". A origem do silêncio é a homofobia, um falso preconceito moral que subordina e oprime os fora da lei de gênero heterossexista. Mas a ordem jurídica democrática mostrou seu vigor - mesmo sem a devida mudança de mentalidades da sociedade brasileira, o princípio da igualdade saiu vitorioso. As 60 mil famílias que se declararam gays para o Censo 2010 podem sair do armário sem medo da insegurança jurídica. A mais alta corte do País declarou o fim da clandestinidade para elas.
DEBORA DINIZ É PROFESSORA DA UNB E PESQUISADORA DA ANIS - INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO
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