quarta-feira, março 02, 2011

Muniz Sodré sobre a polêmica Monteiro Lobato hoje no Observatório da Imprensa

Edição 631 de 1/3/2011
www.observatoriodaimprensa.com.br
URL do artigo: www.observatoriodaimprensa.com.br


RACISMO "AFETUOSO"
Monteiro Lobato vai para o trono?

Muniz Sodré

Um incidente pré-carnavalesco trouxe de novo à cena a figura de
Monteiro Lobato, que frequentara com alguma assiduidade as páginas da
imprensa no ano passado, quando o Conselho Nacional de Educação (CNE)
considerou racista o livro Caçadas de Pedrinho. Agora é a camiseta
desenhada por Ziraldo para o bloco carioca "Que merda é essa?", em que
Lobato aparece sambando com uma mulata. Houve manifestação popular e
protestos, dos quais o mais veemente e consistente foi o da escritora
Ana Maria Gonçalves, autora de Um Defeito de Cor, romance notável no
panorama da literatura brasileira contemporânea.

Nenhum jornal reproduziu o teor da carta – ponderada e judiciosa – da
escritora ao cartunista, admitindo que poderia tê-la estendido a
outros destinatários, nomes importantes no chama do corredor
literário. Há, porém, a internet, e graças a ela se fica a par dos
argumentos da romancista, todos inequívocos quanto ao racismo do
consagrado autor de Caçadas de Pedrinho. Pela imprensa escrita,
ficou-se sabendo apenas que, na opinião da autoridade tal, "a
manifestação era uma besteira", ou então que carnaval não é ocasião
para "assuntos de seriedade".

Para meter aqui a colher na discussão, é preciso deixar claro de
início e de uma vez por todas, o seguinte: Monteiro Lobato era um
racista confesso, seu ódio aos negros não é nada que se deduza por
interpretação de seu texto ficcional. Mas quase todo o mundo leitor
sabe disso. É lamentável fingir inocência ou alegar que o racismo
brasileiro é diferente, é "afetuoso". Aí estão publicadas as cartas ao
amigo Godofredo Rangel, em que Lobato se perguntava como seria
possível "ser gente no concerto das nações" com aqueles "negros
africanos criando problemas terríveis". Que problemas? Simplesmente
serem negr os, serem o que ele chamava de "pretalhada inextinguível".
O escritor sonhou ficcionalmente com a esterilização dos negros (vide
O Presidente Negro) e sugeriu, muito antes do apartheid sul-africano,
o confinamento dos negros paulistas em campos cercados de arame
farpado.

Não cabe argumento

No entanto, se me perguntassem qual a minha relação pessoal com a
literatura infanto-juvenil de Lobato, eu teria de ser honesto e
confessar que, ainda menino, no interior do Brasil, era fascinado por
suas narrativas. Francamente, eu nunca havia percebido os laivos
racistas, que não são tão numerosos assim em sua obra ficcional, mas
estão lá para quem se dispuser a bem enxergar. Lobato dizia que a
escrita é um "processo indireto de fazer eugenia" e de fato ele sabia
como fazer. Isso significa que se deva banir a literatura de Lobato?
Como se pode abominar o que também se ama ou se amou?

Não são questões fáceis. O que se pode inicialmente fazer é forne cer
algum material para uma reflexão, que talvez possa mesmo contribuir
junto aos editores de nossa mídia para a adoção de posições mais
qualificadas no tocante à difícil questão racial brasileira.

O primeiro ponto a se levar em conta, se desejarmos uma avaliação
objetiva da posição de um "outro", estranha à nossa, é que se rejeite
o binarismo simplista das oposições radicais (direita/esquerda,
culpa/inocência etc.) porque debilita as formas mais abrangentes de
compreensão do mundo. Claro que existe o racismo, assim como a direita
política, autoritária e odiosa no passado, às vezes coberta com pele
de cordeiro e sempre formuladora de políticas a serviço do capital
financeiro e dos complexos industriais. Mas a radicalização da
oposição a seu contrário impede não apenas a compreensão de dimensões
sutis e ambivalentes de determinados problemas, como também a
percepção de aspectos obtusos e autoritários na esquerda supostamente
progressista.

A atuação soviética no l este da PolÃ?nia, durante a Segunda Grande
Guerra, tinha em comum com alemã no oeste a palavra "atrocidade".
Sobre as vítimas dos genocídios, não cabe o argumento das
especificidades políticas.

Diferença que não é metafísica

Depois, que se ponham entre parênteses aspectos historicamente
rebarbativos das circunstâncias ideológicas em que se gerou um
determinado saber tido como relevante para a consciência crítica. Por
exemplo, a inegável adesão de Heidegger a um momento do
nacional-socialismo alemão, uma das primeiras ditaduras tecnológicas
do Ocidente, não oblitera a importância da crítica heideggeriana à
técnica. Outro exemplo: o passado nazista de Carl Schmitt não impede
que sua obra hoje possa ser academicamente avaliada como uma das mais
importantes da ciência política contemporânea.

É um engano, portanto, pÃ?r a razão de um lado e a desrazão de outro,
em termos absolutos. Quando falamos de "razão", estamos nos referindo
à possibilidade de conhecer a priori, erigida como faculdade superior
do homem. Mas não raro as posições divergentes são aspectos
diferenciados da mesma razão, tomada como contraditória à primeira
vista. É que existe uma espécie de "impacto emocional dos conceitos",
referido por Florestan Fernandes ao criticar as formulações
sociológicas que se detêm em determinações estruturais de significado
geral, fora e acima dos contextos histórico-sociais, e assim "criam
uma falsa consciência crítica da situação existente, paradoxalmente
simétrica às mistificações antirradicais, elaboradas por meio das
ideologias conservadoras".

Há evidentemente limites para a convergência ou para a reconciliação
dos contrários (esses limites fornecem historicamente os materiais da
oposição esquerda/direita). Em termos bem esquemáticos, pode-se dizer
que a direita sempre esteve do lado do capital, enquanto a esquerda
almejou a alternativa socialista. Mas a diferença não é metafísica, e
sim histórica, e só pode ser d eduzida de situações socialmente
concretas.

Racista confesso

Em outras palavras, se não reconhecemos no trabalho dos autores
historicamente classificados como de direita (reacionário,
comprometido com a manutenção do status quo, a despeito das
iniquidades) a mesma inteligência que gerou o trabalho de pensamento
de esquerda (revolucionário ou reformista, empenhado na transformação
das estruturas sociais e das formas vigentes de dominação), deixamos
de entender por quê determinadas formas de dimensionamento da
realidade foram tão aceitáveis para vastas parcelas da humanidade,
ainda que contrárias à veracidade por nós atribuída à órbita
intelectual e afetiva em que nos movimentamos, portanto, às vontades
que comandam a nossa inteligência.

É provável que esse modo de pensar não resolva de imediato a questão –
lobatiana – em pauta. Mas aponta para a densidade e a diferenciação
dos níveis de leitura. Num certo nível, é possível a uma consciência
generosa o u solidária para com as diferenças aproveitar algo do
brilho de um pensamento conservador, nada solidário para com o outro.
Em outro nível, isso é impossível. Por exemplo, a uma criança,
portanto no estágio plástico e movediço de sua socialização, torna-se
muito difícil fazer a crítica do criticável. O Lobato de que estamos
falando é aquele que escrevia para um público infanto-juvenil, esse
mesmo sobre quem os preconceitos e os estereótipos atuam com toda a
força emocional que costumam ter. É, portanto, um público a ser
protegido.

Se até hoje escritores, intelectuais, jornalistas, homens ditos
públicos não conseguem assimilar a gravidade da questão racial e
perdem o siso quando veem os pés de barro de seu escritor-ídolo de
infância, como esperar que as crianças o façam? Lobato era, sim, um
bom escritor, um editor importante, um visionário (sempre acreditou na
existência de petróleo no solo nacional), mas também um racista
confesso. Este é o real, este é o fato, que é p reciso aceitar como
ponto de partida para depois se decidir, como diria o Chacrinha, se
ele vai ou não para o trono, se será ou não buzinado.

Um comentário:

Anônimo disse...

Buzinado!
Rosane Chonchol