domingo, outubro 31, 2010

Reinações do CNE

Folha de São Paulo, sábado, 30 de outubro de 2010

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Reinações do CNE

Mesmo levando em conta os padrões de excepcional qualidade da obra infantil de Monteiro Lobato, "Caçadas de Pedrinho" ocupa um lugar à parte. Sem incidir no enciclopédico didatismo que, com o passar dos anos, levou o autor -e seus personagens- aos territórios da gramática, da aritmética e da geologia, o livro combina magistralmente um certo enfoque realista do cotidiano rural com o humor, a fantasia e a aventura.
Publicado em 1933, dois anos depois da estreia do autor no gênero, com "Reinações de Narizinho", trata-se sem dúvida de um dos livros mais carinhosamente guardados na memória do público brasileiro.
Por isso mesmo, haverá de ser quase como um insulto pessoal que muitos receberão a iniciativa, tomada por alguns burocratas em Brasília, de advertir contra a adoção de "Caçadas de Pedrinho" nas escolas da rede pública.
Parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) considerou inadequado o conteúdo da obra, que conteria, por exemplo, "menção revestida de estereotipia ao negro e ao universo africano".
É verdade. Tia Nastácia é objeto, como em outros livros de Lobato, de patente preconceito; "Caçadas de Pedrinho" compara-a, numa passagem, a uma "macaca de carvão". Por chocantes que sejam essas palavras hoje em dia, o fato é que ao escrevê-las o autor não se afastou da mentalidade que predominava na elite de seu tempo -e nenhum livro clássico, desde Homero, resistiria incólume a um teste de correção política.
Seria correto, por exemplo, matar a golpes de espada os inimigos, como ocorre em qualquer história de cavaleiros, gigantes e dragões? Não seria machista um príncipe encantado? As feias irmãs de Cinderela mereceriam tratamento mais equilibrado?
Felizmente, a literatura não se conforma aos critérios de quem pretende discipliná-la com a régua, em si mesma variável historicamente, do certo e do errado. Se há racismo em Lobato, melhor discuti-lo em classe do que evitar sua leitura. O CNE teme, tudo indica, que professores da rede pública não saibam abordar adequadamente a questão. Não seria preconceito, entretanto, imaginá-los tão incapazes intelectualmente?
Os macacos, diz um dos trechos de Lobato criticados pelo CNE, parecem-se muito com os homens. "Só dizem bobagens". É uma pena que não se possam indicar, para a composição do ilustre colegiado, sábios como o Burro Falante, o rinoceronte Quindim, o Visconde de Sabugosa ou, vá lá, uma boneca de pano.
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