domingo, outubro 24, 2010

Homossexuais e aids no Brasil: até onde vai essa omissão?

Por Mário Scheffer 

Recente estudo divulgado pelo Ministério da Saúde revelou que a prevalência do HIV entre os homossexuais com mais de 18 anos em dez municípios pesquisados foi de 10,5%, taxa 17 vezes maior do que a registrada na população em geral. Embora limitado – por ignorar São Paulo e não divulgar a prevalência de cada cidade pesquisada –, o estudo pauta uma discussão escamoteada no Brasil: a Homossexuais e aids no Brasil: até onde vai essa omissão? infecção pelo HIV tem um impacto desproporcionalmente maior entre os homossexuais.

O que propomos é a retomada de um tema que se tornou marginal: a reavaliação do processo que muitos chamaram de “des-homossexualização” da aids no País.

Os fatos mostram que o perfil da epidemia no Brasil não corresponde àquela teoria tão propalada. Aqui, a aids é concentrada: o HIV não é disseminado uniformemente na população e os homossexuais integram um dos grupos afetados de forma mais contundente.

Mas assumir a constância da epidemia da aids junto aos gays tornou-se um tabu, negação supostamente protetora. O receio de reabrir a superada noção de "grupo de risco" que tanto estigmatizou os homossexuais no passado não pode dar lugar ao comportamento avesso à realidade de alguns técnicos governamentais em simbiose com parte do movimento LGBT.

O fosso que separa o problema do seu enfrentamento tem a ver, em primeiro lugar, com a opção titubeante da vigilância epidemiológica dos programas de aids. Beira a manipulação sugerir que o grupo dos heterossexuais é mais exposto ao risco por ser proporcionalmente maior que os homossexuais na composição relativa do total de casos de aids. Cientistas sérios já advertiram sobre a imprecisão de usar proporções – e não taxas que levem em conta a dimensão da população exposta – para a análise da distribuição dos casos segundo modos de transmissão. Ou seja, a disseminada ideia de que hoje a epidemia da aids impacta mais os heterossexuais é enganosa.

Um segundo erro, a meu ver político: a epidemia entre os gays não será contida exclusivamente com ações afirmativas e de direitos humanos, muito embora sejam essas imprescindíveis para criar um ambiente favorável às medidas de prevenção que hoje não são executadas.

A nossa história de combate à aids já ensinou o caminho. Reduzimos exemplarmente a infecção entre usuários de drogas injetáveis não apenas defendendo a descriminalização das drogas e os direitos dessa população, mas adicionando a isso uma política inovadora e audaciosa de redução de danos. A queda drástica da transmissão vertical – da mãe para o bebê – não ocorreu apenas com a defesa dos direitos das mulheres e da igualdade de gênero, mas também com a melhoria do acesso ao pré-natal, sensibilização de profissionais e disponibilização da profilaxia.

Para sair do marasmo, para ir além da luta contra a homofobia e da distribuição de camisinhas e folhetos em paradas e locais de freqüência gay, é preciso compreender a complexa interação de fatores que conduzem à alta prevalência da infecção entre homossexuais.

Os esforços de prevenção devem ser tão diversificados quanto à própria população de homens que fazem sexo com homens - que se identificam como homossexuais, gays, bissexuais, travestis, até mesmo heterossexuais ou que não assumem nenhuma identidade sexual. São cidadãos presentes em todas as comunidades, de todas as idades, raças, estratos sociais, profissões e regiões do país, são jovens, adolescentes, idosos, HIV-positivos, profissionais do sexo, usuários de drogas, casados com mulheres, detentos etc.

Muitos frequentam bares, baladas, saunas, cinemas, banheiros públicos, parques, mas grande parte deles está diluída na população em geral. Nem sabemos ao certo como chegar até eles.
Parados no tempo, não desenvolvemos modelos de prevenção que consideram o impacto desigual da infecção pelo HIV nas diferentes formas de viver a homossexualidade. Não há no Brasil política pública de prevenção adaptada às novas gerações, às maneiras atuais de afirmação de identidades homossexuais, aos novos comportamentos e estilos de vida que influenciam a gestão do risco.
O fato é que é o amplo conhecimento por parte dos homossexuais sobre as formas de infecção pelo HIV não se traduz na adoção de comportamentos seguros. É parcial o raciocínio de que há complacência dos homossexuais, que, em plena era do tratamento potente, não viveram pessoalmente a severidade das primeiras fases epidemia da aids. Também é parcial a visão de que a discriminação, somente ela, impede os gays de acessarem a prevenção. 
As relações sexuais entre homens muitas vezes são espontâneas, passageiras, escondidas, anônimas. Por uma questão de cultura dessas pessoas, não só porque são excluídos e discriminados. Há dificuldade em fazer sexo seguro consistente, permanente, ao longo de toda a vida. É difícil propor e aceitar a utilização do preservativo, por exemplo, num contexto de múltiplos parceiros.

Ao optar por uma política substitutiva que só enxerga a vulnerabilidade social dos gays, o Brasil não promoveu um programa integral de saúde pública, nem sequer absorveu evidências internacionais que dão pistas para aprimorar as mensagens e instrumentos de prevenção. Sabe-se que fatores como exclusão social, depressão e auto-estima abalada estão ligados à infecção pelo HIV entre homossexuais; que a realização de seguidos testes com resultados negativos conduz à falsa noção de uma certa “imunidade” em relação ao vírus; que o uso de álcool ou de drogas antes da relação sexual leva à perda do controle da situação e ao sexo de maior risco; que a Internet é facilitadora de práticas sexuais desprotegidas entre os gays e, por isso, um campo de prevenção prioritário.
Vários países promovem hoje debates que talvez sejam difíceis de o Brasil assimilar, mas não é correto deixar de disponibilizar as informações. A França discute programas de prevenção para gays baseados na redução de danos e na hierarquização de riscos. Para deter a epidemia, a Suíça defende o acesso precoce e contínuo dos homossexuais HIV-positivos à terapêutica antirretroviral. A Austrália levanta que a circuncisão pode proteger os homens homossexuais que têm preferência por sexo insertivo. Nos Estados Unidos, as autoridades sanitárias preferem levar a público uma situação até mais alarmante que a nossa, pois lá um em cada cinco homossexuais é portador do HIV, quase a metade ignora ser soropositivo e a taxa de infecção entre homens gays subiu 17% desde 2005 , conforme estudo do CDC publicado em setembro de 2010. E, diferente do Brasil, vários países divulgam aos homossexuais a possibilidade de acessarem os medicamentos antirretrovirais imediatamente após a exposição sexual ao risco.

Não será possível, de um dia para o outro, recuperar mais de uma década perdida. Mas é hora de abrir a discussão e tomar medidas concretas, inovar na prevenção (a ser liderada pelas prefeituras, não só pelas ONGs), fazer aumentar a testagem voluntária entre os gays, diminuir o diagnóstico tardio por meio do teste rápido (feito nas unidades públicas, por profissionais do SUS), ampliar a insuficiente distribuição de preservativos e gel lubrificante íntimo, respeitar e incluir os homossexuais que vivem com HIV como parte da solução.

As medidas voltadas para os jovens homossexuais são as mais urgentes. Não podemos permitir no Brasil que o HIV seja um ritual de passagem para cada nova geração de homossexuais, como está acontecendo, por paralisia e omissão.

A proibição de doar sangue imposta pelo próprio Ministério da Saúde e a não concretização de projetos de lei que instituiriam a união civil e a criminalização da homofobia, além da identificação dos gays como vilões e culpados pela disseminação do HIV, são faces do mesmo preconceito que dificulta olhar de frente para um problema de saúde pública de tamanha magnitude.

Devemos quebrar barreiras e mudar a história da prevenção do HIV entre os homossexuais no Brasil, até agora um caminho de ações dispersas e erráticas.

Mário Scheffer é presidente do Grupo Pela Vidda-SP. mscheffer@uol.com.br

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