quarta-feira, julho 21, 2010

Editorial da Folha de São Paulo - 19/07

Casamento gay

Não foi das mais tranquilas a aprovação, pelo Senado argentino, da mudança
no Código Civil que autoriza a realização do casamento entre homossexuais.
Um dia antes da votação, estimava-se informalmente que 31 senadores
defenderiam a medida, contra igual número de refratários à inovação. O
resultado, após 14 horas de debate, foi de 33 votos a favor, 27 contra e
três abstenções.
Manifestações de apoio e de repúdio se alternaram em Buenos Aires; o debate
ganhou notas enfáticas quando o arcebispo da capital, cardeal Jorge
Bergoglio, advertiu que não estava em jogo "um mero projeto legislativo, e
sim uma jogada do Pai da Mentira para confundir e enganar os filhos de
Deus". Ao que a presidente Cristina Kirchner reagiu, dizendo que a frase
"lembrava realmente os tempos da Inquisição".
De uma perspectiva leiga, parecem sem dúvida exageradas as reações a um
ordenamento de relações humanas que se localiza estritamente na ordem da
vida privada, e que busca apenas no reconhecimento por parte do Estado, e
não de uma instituição religiosa, a solução para uma série de problemas.
Questões de herança e planos de saúde, por exemplo, afetam o cotidiano de
uma parcela ainda sujeita a formas odiosas de discriminação. Menos do que se
contrapor ao casamento gay, parece ser na verdade contra o próprio
homossexualismo que se insurgem os mais exaltados.
A Argentina consegue superar, assim, uma forma de discriminação, ou no
mínimo um tabu, que ainda persiste em muitos países democráticos. Entre
eles, como se sabe, o Brasil -onde nem sequer a ideia de uma união civil
homossexual consegue vencer os temores e o conformismo da maioria das
lideranças políticas.
Curiosamente, países onde se imagina ser mais forte do que aqui a influência
do clero -como Portugal, Espanha e a própria Argentina- foram mais rápidos
em aprovar o casamento homossexual do que uma nação supostamente liberal em
termos de costumes, como o Brasil.
O elogio da informalidade, a indiferença pelas formas jurídicas, tantas
vezes presentes nos discursos apologéticos sobre o país, esconde aqui um
lastro de timidez e subserviência ao preconceito que cobra, de muitos casais
de homens e mulheres, o preço de dificuldades na vida prática e de uma
semiclandestinidade no mundo legal sem nenhuma justificativa, exceto o
obscurantismo religioso.*

Nenhum comentário: