“Não estamos frente a um caso isolado que possa ser compreendido apenas como fruto da perversidade ou da maldade de alguns indivíduos. Trata-se da manifestação mais radical do preconceito ainda mantido por parte significativa da população brasileira”, afirma o antropólogo Sergio Carrara (CLAM/IMS/UERJ) em artigo publicado no jornal Folha de São Paulo (edição de 06/07/2010) sobre o assassinato do adolescente Alexandre Ivo, 14 anos, supostamente morto (pelo que indica a investigação policial ainda em curso) por jovens vinculados a grupos cuja ideologia organiza-se em torno da homofobia. O crime aconteceu no domingo, 20 de junho, em São Gonçalo, cidade da região metropolitana do Rio de Janeiro, e tem causado enorme debate nos meios de comunicação e comoção na opinião pública brasileira, dada a violência brutal que vitimou o adolescente.
Alexandre, alexandres...
Sérgio Carrara1
Nos últimos meses, a expressão "homofobia" entrou definitivamente na linguagem corrente da mídia brasileira. Mais do que a incorporação de uma nova palavra, o fenômeno aponta para uma crescente inquietação social em relação a uma atitude intolerante e preconceituosa específica. Aparentada ao machismo e ao sexismo, freqüentemente articulada ao racismo e à xenofobia, a homofobia designa a rejeição que, em certos contextos chega ao ódio e ao extermínio, de que são objeto pessoas que não manifestam atributos - práticas, inclinações, desejos - convencionalmente vinculados ao sexo que lhes foi atribuído ao nascer. Homens considerados excessivamente femininos, mulheres consideradas masculinas e, em especial, aqueles e aquelas que desejam sexualmente pessoas do mesmo sexo continuam a ser estigmatizados e atirados ao terreno da vergonha, da injúria e da abjeção, onde se tornam vulneráveis a diferentes formas de violência. A homofobia é, portanto, o preconceito contra o qual vem se batendo há várias décadas o movimento LGBT e os defensores dos direitos humanos em diferentes países.
Assistimos recentemente a mais um assassinato cometido, ao que tudo indica (a investigação policial ainda está em curso), por jovens vinculados a grupos cuja ideologia organiza-se em torno da homofobia e de valores homofóbicos. A vítima, um adolescente de 14 anos que morava na cidade de São Gonçalo (RJ), foi trucidado de forma covarde e brutal por ser gay ou, como declara sua mãe, por ter amigos gays. Isso não importa. A se confirmar a motivação do crime, não estamos frente a um caso isolado que possa ser compreendido apenas como fruto da perversidade ou da maldade de alguns indivíduos. Trata-se, sim, da manifestação mais radical do preconceito ainda mantido por parte significativa da população brasileira e presente em nossas instituições, valores e leis (ou na ausência delas). Esse preconceito vem suprimindo a vida de muitos homens e mulheres, cuja morte civil decretada pela homofobia, muitas vezes precede e prepara a morte real.
Além de chorar os mortos e exigir que a justiça seja feita de modo exemplar nesses casos, devemos pensar como enfrentar a homofobia e os crimes de ódio que ela motiva, compreendendo o ambiente social onde medram esses horrores. Um esforço importante nesse sentido foi feito recentemente pela Fundação Perseu Abramo, ao conduzir em 2009 uma pesquisa nacional sobre o tema. De modo
1 Antropólogo, Professor Adjunto da UERJ, Coordenador do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos, Pesquisador do CNPq.
geral, ela mostra a força da homofobia na sociedade brasileira. Quando convidados, por exemplo, a declarar o que sentem sobre diferentes tipos de pessoas, nada menos do que 20% dos homens e mulheres entrevistados disseram sentir "antipatia", "repulsa" e até "ódio" por lésbicas, gays, travestis e transexuais e cerca de 40% ainda consideram a homossexualidade uma "safadeza", "falta de caráter" ou "doença". Além disso, os resultados da pesquisa ajudam a perceber melhor como essa forma particular de ódio se distribui por diferentes categorias sociais. Como esperado, homens tendem a ser, de modo geral, mais homofóbicos que mulheres e a homofobia cresce sistematicamente conforme diminuem os anos de estudo. O que surpreende, entretanto, é que os homens jovens, com idades entre 16 e 24 anos, são mais homofóbicos do que seus pais e quase tão homofóbicos quanto seus avôs. Em contraste, entre as mulheres, a homofobia tende a aumentar progressivamente, conforme aumenta a idade das entrevistadas, sendo as mais jovens significativamente mais tolerantes que as mais velhas. Assim, se apenas 1% das mulheres mais jovens declarou que expulsaria um filho gay ou uma filha lésbica de casa, 14% dos homens nessa faixa etária disseram que tomariam tal medida.
Muito provavelmente a marcada atitude homofóbica presente entre os homens jovens, como os que estão sendo acusados de matar Alexandre Ivo, explica-se pelo modo como se processa a afirmação da identidade masculina nessa fase da vida. Para ser "homem de verdade" é preciso dar provas de que se é macho, o que, nesse caso, significa a rejeição, em si e nos outros, de quaisquer características ou desejos considerados tipicamente femininos. No caso do último assassinato, suspeita-se que, além de homens e jovens, os criminosos fizessem parte de certas gangues urbanas cuja ideologia, ao entrelaçar a homofobia ao racismo e ao sexismo, tem se mostrado letal não apenas para gays, lésbicas e travesti, mas também para mendigos, trabalhadores pobres, negros e imigrantes.
Os poderes públicos têm uma urgente agenda a cumprir para por fim a esse circo de horrores. No plano educacional, devem incentivar a emergência e desenvolvimento de novas formas de viver a masculinidade. No plano legal, devem dar sinais claros a toda a sociedade brasileira de que gays, lésbicas, travestis e transexuais merecem o mesmo respeito e amparo legal de que gozam todos os cidadãos. A Justiça e o Executivo vêm tomando medidas importantes, mas o Congresso parece ainda hesitar em aprovar projetos fundamentais, como o que, alterando o Código Civil, abre a instituição do casamento a quaisquer indivíduos, independente de seu sexo e orientação sexual, ou o que altera o Código Penal, criminalizando a homofobia. E essa hesitação deve também ser considerada a causa da morte desse e de tantos outros alexandres, que o preconceito, o silêncio e a indiferença de tantos abandonam à intolerância e ao ódio de alguns.
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