quarta-feira, junho 16, 2010

G Ê N E R O E D I V E R S I D A D E N A E S C O L A

Educação, diferença, diversidade e desigualdade
Sérgio Carrara
Coordenador geral do CLAM/IMS/UERJ

Trabalhar simultaneamente a problemática de gênero, da diversidade sexual e das relações
étnico-raciais, ou seja, abordar em conjunto a misoginia, a homofobia e o racismo não
é apenas uma proposta absolutamente ousada, mas oportuna e necessária. No Brasil, o
estudo destes três temas e dos correlativos processos de discriminação social deu origem
a campos disciplinares distintos (quem estuda uma coisa não estuda outra), a diferentes
arenas de atuação de ativistas (cujo diálogo entre si nem sempre é fácil) e, finalmente, a
políticas públicas específicas.
Apesar dessa fragmentação, gênero, raça, etnia e sexualidade estão intimamente imbricados
na vida social e na história das sociedades ocidentais e, portanto, necessitam de uma
abordagem conjunta. Para trabalhar estes temas de forma transversal, será fundamental
manter uma perspectiva não-essencialista em relação às diferenças. A adoção dessa
perspectiva justifica-se eticamente, uma vez que o processo de naturalização das diferenças
étnico-raciais, de gênero ou de orientação sexual, que marcou os séculos XIX e XX, vinculou-
se à restrição do acesso à cidadania a negros, indígenas, mulheres e homossexuais.
Lembremos, por exemplo, que até o início do século XX uma das justificativas para a não
extensão às mulheres do direito ao voto baseava-se na idéia de que elas possuíam um
cérebro menor e menos desenvolvido que o dos homens. Este imperativo de encontrar no
corpo as razões de tais diferenças, ou seja, de essencializá-las ou naturalizá-las, explica-se
pela preponderância formal dos princípios políticos do Iluminismo, muito especialmente do
princípio da igualdade. Depois da Revolução Francesa, nas democracias liberais modernas,
apenas desigualdades naturais, inscritas nos corpos, podiam justificar o não-acesso pleno
à cidadania.
No projeto Gênero e Diversidade na Escola busca-se, portanto, desenvolver uma postura
crítica em relação aos processos de naturalização da diferença, embora reconheçamos que
desigualdades sociais e políticas acabam sendo inscritas nos corpos: corpos de homens
e mulheres, por exemplo, tornam-se diferentes por meio dos processos de socialização.
Obviamente, a questão do estatuto dessas diferenças é um debate aberto e muito
delicado, e a "verdade" sobre isso não deve ser encerrada em uma cartilha ou doutrina de
qualquer ordem. Ao contrário, a escola precisa estar sempre preparada para apresentar
não uma verdade absoluta, mas sim uma reflexão que possibilite aos alunos e às alunas
compreenderem as implicações éticas e políticas de diferentes posições sobre o tema e
construírem sua própria opinião nesse debate. A idéia de que educação não é doutrinação
talvez valha aqui mais do que em qualquer outro campo, pois estaremos lidando com
valores sociais muito arraigados e fundamentais.
Alguns autores vêm mostrando como discursos homofóbicos, misóginos ou sexistas
e racistas estão profundamente articulados. Um dos exemplos mais interessantes diz
respeito ao modo pelo qual, na Alemanha nazista, a ascensão do discurso racista afetou
não apenas as mulheres judias ou ciganas, consideradas racialmente inferiores. Como se
tratava de "proteger" a chamada raça ariana, considerada superior às demais, passou a
ser atribuído às mulheres "arianas" o ambíguo estatuto de "mães da raça". E para cumprir
esse papel deveriam ficar fora do espaço público, permanecendo em casa e ocupando-se
apenas da tarefa de criar filhos "racialmente puros". Vê-se aqui como a adoção do racismo
como política de Estado acabou implicando a reclusão das mulheres ao espaço doméstico.
Vale lembrar que, ainda na Alemanha nazista, o racismo anti-semita articulou-se também
à discriminação de homossexuais. Vistos, como os judeus, como ameaças à raça ariana,
acabaram igualmente sendo enviados a campos de concentração.
Além de relações históricas, há em situações bem cotidianas uma espécie de sinergia entre
atitudes e discursos racistas, sexistas e homofóbicos. Um exemplo talvez banal: se um
adolescente ou aluno manifesta qualquer sinal de homossexualidade, logo aparece alguém
chamando-o de "mulherzinha" ou "mariquinha". O que poucos se perguntam é por que ser
chamado de mulher pode ser ofensivo. Em que sentido ser feminino é mau? Aqui pode ser
visto o modo como a misoginia e a homofobia se misturam e se reforçam. A discriminação em
relação às mulheres ou ao feminino articula-se à discriminação dos sexualmente diferentes,
daqueles que são sexualmente atraídos por pessoas do mesmo sexo.
O sofrimento que emerge dessa situação para adolescentes de ambos os sexos talvez só
possa ser realmente avaliado por aqueles/as que foram submetidos/as a tais processos
de estigmatização e marginalização. Além disso, freqüentemente o discurso racista utiliza
características atribuídas às mulheres para inferiorizar negros/as, indígenas ou outros
grupos considerados inferiores: "São mais impressionáveis, mais imprevidentes, mais
descontrolados, mais impulsivos" etc. e, como as mulheres, estariam mais próximos da
natureza, devendo ser tutelados, ou seja, tratados como crianças, incapazes de exercer
plenamente seus direitos políticos.
Assim, diferentes desigualdades se sobrepõem e se reforçam. Faz todo o sentido, portanto,
discuti-las em conjunto, pois aquele que é considerado como cidadão, o sujeito político por
excelência, é homem, branco e heterossexual. Em torno dele constrói-se todo um universo
de diferenças desvalorizadas, de subcidadãos e subcidadãs.
Ao discutir tais questões com os/as professores/as brasileiros/as, busca-se contribuir, mesmo
que modestamente, com a escola em sua missão de formadora de pessoas dotadas de
espírito crítico e de instrumentos conceituais para se posicionarem com equilíbrio em um
mundo de diferenças e de infinitas variações. Pessoas que possam refletir sobre o acesso
de todos/as à cidadania e compreender que, dentro dos limites da ética e dos direitos
humanos, as diferenças devem ser respeitadas e promovidas e não utilizadas como critérios
de exclusão social e política.
Precisamos, portanto, ir além da promoção de uma atitude apenas tolerante para com a
diferença, o que em si já é uma grande tarefa, sem dúvida. Afinal, as sociedades fazem
parte do fluxo mais geral da vida e a vida só persevera, só se renova, só resiste às forças
que podem destruí-la através da produção contínua e incansável de diferenças, de infinitas
variações. As sociedades também estão em fluxo contínuo, produzindo a cada geração
novas idéias, novos estilos, novas identidades, novos valores e novas práticas sociais. Se
o projeto Gênero e Diversidade na Escola contribuir, um pouco que seja, para a formação
de uma geração que entenda o caráter vital da diferença (pelo menos de algumas delas),
já terá cumprido em grande medida seu objetivo.


G Ê N E R O E D I V E R S I D A D E N A E S C O L A
Formação de Professoras/es em Gênero, Sexualidade, Orientação Sexual e Relações Étnico-Raciais
www.e-clam.org

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