Projeto de Lei dispõe sobre aproteção do nascituro e retira o direito da mulher, hoje garantido por lei, deabortar em caso de estupro
O artigo 128 do Código PenalBrasileiro permite a prática do aborto realizada por médicos em dois casos: senão há outro meio de salvar a vida da gestante (aborto terapêutico), ou se agravidez resulta de estupro e há consentimento da gestante (abortosentimental). Direito esse garantido desde 1940, quando entrou em vigência oCódigo Penal. No entanto, esse artigo pode ser revogado, ainda que nãoexpressamente, se aprovado o Projeto de Lei nº 478/07, proposto pelos deputadosLuiz Bassuma (PT-BA, atualmente no PV) e Miguel Martini (PHS-MG), que dispõesobre a proteção do nascituro. As organizações de defesa dos direitos da mulhercolocam que se trata de um retrocesso revogar um direito reconhecido à mulherdesde a primeira metade do século XX.
O Projeto de Lei entende quenascituro é o ser humano concebido, mas ainda não nascido, e dispõe sobre suaproteção integral desde a concepção. Dessa forma, conforme o art. 13 do PL478/07, a gestante que for vítima de violência sexual não poderá interromper agravidez. Junto com os demais dispositivos da proposta normativa, o art. 13revoga tacitamente o art. 128 do Código Penal, que dispõe sobre o aborto legal.Isso significa que o PL, sem expressar isso no corpo do texto, retira einvalida a existência e eficácia do dispositivo penal que permite o abortoterapêutico e o aborto sentimental. Deve-se pontuar que a revogação tácita évedada na legislação brasileira, de forma que o Projeto de Lei que a realizarestá violando a Lei Complementar nº 95, de 1998, e o Decreto nº 4.176, de 2002,que estabelecem normas e diretrizes para a elaboração, a redação, a alteração,a consolidação e o encaminhamento ao Presidente da República de projetos deatos normativos de competência dos órgãos do Poder Executivo Federal. Logo, oPL nº 478, de 2007, é ilegal.
O art. 13 traz ainda que o agressorserá responsável por pagar pensão alimentícia até que a criança complete 18anos, e caso não seja identificado, a obrigação recai sobre o Estado, o queseria um absurdo, a menos que se pense na descriminalização do crime deestupro, visto que, uma vez preso, não haveria como o genitor, mesmo identificado, pagar pensão alimentícia; ou que se idealize a retomada da antigalegislação criminal, em que se previa a extinção da punição do infrator de talviolência sexual, caso a vítima se casasse com ele (redação anterior do incisoVII do art. 107 do Código Penal, revogado pela Lei nº 11.106, de 2005).
Em decorrência do art. 13,instituições e associações voltadas à defesa dos direitos da mulher apelidaramo PL de "Bolsa Estupro", e afirmam que ele poderá ocasionar umaumento no número de processos com acusações falsas; além do aumento dos crimesde calúnia e consequente sobrecarga da máquina do Judiciário, acrescentando-se,ainda, o excessivo ônus ao Estado.
O PL está tramitando na Câmara dosDeputados e foi votado, nesta quarta-feira, dia 19 de maio, pela Comissão deSeguridade Social e Família (CSSF). Somente nessa comissão, ele já foi retiradode pauta quatro vezes. Na última reunião ordinária da CSSF, o deputado DarcísioPerondi (PMDB-RS) apresentou requerimento de retirada de pauta por 9 sessões, oque foi rejeitado pela maioria dos presentes. Dessa forma, provavelmente, o PLserá submetido à aprovação da Comissão na próxima reunião da CSSF.
Se aprovado o Projeto de Lei, ficaproibida também qualquer "incitação" ou "apologia aoaborto", termos que sugerem o cerceamento do direito de livre expressão emanifestação sobre a temática.
O debate sobre o aborto no Brasil seintensificou muito nos últimos anos, devido principalmente à mobilização dasorganizações de mulheres e feministas, que serve de estímulo para o lançamentode pesquisas acadêmicas e para a discussão na mídia. A temática do abortotambém tem sido objeto de discussão no âmbito dos poderes Executivo,Legislativo e Judiciário. As organizações envolvidas no debate defendem ainclusão do aborto enquanto uma questão de saúde pública, enfatizando também aautonomia das mulheres e seu direito de escolha. O ponto crucial do debate é acriminalização do aborto, que leva várias mulheres à morte todos os anos, porrealizarem o procedimento em clínicas clandestinas ou pela ingestão demedicamentos sem nenhuma instrução médica.
O cálculo da magnitude do aborto noBrasil tem como maior desafio a dificuldade de acesso a dados fidedignos, alémda omissão das mulheres que passaram pelo procedimento, por medo de seremestigmatizadas socialmente e até mesmo condenadas judicialmente. Relatóriolançado pelo Ministério da Saúde, em 2009, intitulado "20 anos depesquisas sobre aborto no Brasil", aponta a magnitude do aborto ilegal no paísa partir da década de 1990, quando o aborto induzido se manteve entre aterceira e a quarta causas de mortalidade materna em várias capitaisbrasileiras. A estimativa oficial da razão de morte materna é de 76 a cada 100mil habitantes. De acordo com estudo recente do Ipas, o número estimado deabortos inseguros, em 1992, era equivalente a 43% dos nascimentos vivos. Estaproporção cai para 31% em 1996. Apesar de ter diminuído na década de 1990, em2005, ainda correspondia a cerca de 30% dos nascimentos.
Em 2005, foi entregue na Câmara dosDeputados anteprojeto de lei que previa a descriminalização e legalização doaborto no Brasil. O anteprojeto foi elaborado por uma Comissão Tripartite,instituída pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência daRepública (SPM/PR) e integrada por representantes dos poderes Executivo eLegislativo e da Sociedade Civil, os quais propuseram uma profunda revisão nalegislação brasileira sobre aborto. Porém, não foi dada continuidade aoresultado final da Comissão, ou seja, ao anteprojeto de lei que continha aproposta de revisão da legislação punitiva do aborto, em razão da mudança delegislatura. Nunca foi aprovada nenhuma lei que descriminaliza o aborto, e otema continua sendo discutido nas esferas tanto privadas quanto públicas.
Cumpre, novamente, ressaltar que oProjeto de Lei nº 478, de 2007, uma vez aprovado, apresentará um granderetrocesso social e implicará a violação dos direitos fundamentais dasmulheres, pois, em sua atual redação, não permite qualquer prática do aborto,inclusive quando a gestante esteja sob risco de morte e quando a gravidez sejaresultado de um dos mais cruéis dos crimes, o estupro. Com isso, estar-se-áinsistindo no erro que leva milhares de mulheres à morte no Brasil: tratar oaborto como questão de política criminal, ao invés de entender e enfrentá-loenquanto problema de saúde pública.
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